sexta-feira, agosto 26, 2005

Havia um homem ao fundo da rua.

Todos os dias esse homem fazia as mesmas coisas. Sempre que olhava para o espelho, via coisas diferentes. Estranhava nunca encontrar a mesma imagem reflectida no espelho. Fazia um esforço por manter as rotinas sempre no mesmo lugar, sempre com o mesmo tempo, sempre com a mesma expressão no olhar... e aparecer uma imagem diferente no espelho, a cada dia que passava, deixava-o agitado, ansioso...

Desde que se lembrava de si próprio que se recordava de ter as coisas no mesmo sítio, à mesma hora e com a expressão no olhar igual à do dia anterior. Em tempos, não tinha espelho e pensava ser sempre a mesma pessoa. Saía e entrava em casa. Sempre de manhã cedo. Depois das inúmeras rotinas às não queria escapar. Não fazia nada, excepto subir e descer a rua para olhar para quem passava. Alguns já conheciam o homem que vivia no fundo da rua. Outros mostravam medo pela intensa simpatia que ele demonstrava para os estranhos. Achavam-no louco, todos eles. Ficava à janela a ver as pessoas que passavam na rua. Conhecia o passado e o presente dos vizinhos e pensava curioso em como as pessoas não se conheciam umas às outras. Pensava no porquê das pessoas caminharem a olhar para o chão. Em como não pensavam no que comiam, nem no que faziam todos os dias. Não as entendia e achava-as loucas. Tal qual elas pensavam de si sem que o soubesse. Demorava-se horas a pensar em cada uma delas: como caminhavam, como olhavam para os filhos e fixava-se essencialmente na expressão do olhar.Um dia, demorou-se mais do que o habitual na rua. Descobriu um espelho caído na porta de sua casa. Entrou e saíu várias vezes até ter coragem de pegar nele. Pareceu-lhe não ser de ninguém e após várias horas a decidir se faria ou não o que lhe estava na cabeça, saíu a medo e olhou para todos os lados, lá do fundo da rua, e pegou no espelho.

Alterou as suas rotinas só para ficar a olhar o espelho. Depois decidiu ver-se no espelho. Ficou horas a olhar para si mesmo. Fazia caras e caretas e ria-se de si próprio. Então era isto que as pessoas viam quando olhavam para ele. Dormiu feliz com a descoberta que fizera. No dia seguinte decidiu integrar uma nova rotina nos seus dias. Olhava para o espelho antes de sair para a rua e depois de vir da rua. E a preocupação apareceu quando reparou que a cara que via reflectida quando vinha da rua nunca era igual a nenhuma sua que tinha visto antes... Era sempre diferente!

Não percebia que a cara reflectia o que sentia cada uma das pessoas a quem dedicava a sua atenção enquanto passavam na rua. Cada dia dedicava-se mais a uma das pessoas. Não percebia que ele próprio sentia o que cada uma delas escondia de todos incluindo elas próprias. Não percebia que as pessoas o achavam louco porque se viam reflectidas no seu pobre olhar do tempo que para ele não existia. Não percebia que ele era capaz de as reflectir, devolver-lhes aquilo que elas eram em cada um dos dias. Uns dias o que via reflectido era a beleza de alguém enquanto noutros, era fealdade... Uns dias surpreendia-se com o sofrimento e noutros com a alegria.

E o homem lá do fundo da rua queria deitar ao lixo o espelho, mas sentia-se preso a tentar perceber o que afinal era tão simples. Continuou todos os dias a fazer as mesmas rotinas, até morrer um dia. Nesse dia tinha saído de casa como em tantos outros dias antes, mas nesse dia tinha-se encontrado com a morte... e quando olhou ao espelho ao regressar a casa percebeu o que lhe iria acontecer, mas nunca percebeu que a limpidez de quem olha e vê, pode absorver tudo o que os outros escondem, desprezam ou são na realidade...

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