sábado, setembro 24, 2005

Estava a ouvir um disco de St. Germain, enquanto fumava um cigarro e olhava para o infinito da janela como quem olha para dentro de si mesma. Na verdade não pensava em nada excepto na sua condição actual. Apetecia-lhe estar sozinha. Estava um dia de sol e como estava calor as pessoas andavam na rua. As ruas estavam exageradamente cheias de pessoas. O seu corpo dançava uma espécie de ritual de exorcização dos últimos pensamentos que lhe assaltavam a memória. Cada vez conseguia destruir mais o conjunto e centrar-se apenas em alguns pontos mais ou menos vazios de sentido aparente. Recusava-se sair da posição que ocupava no sofá da varanda com vistas sobre a foz do rio. Como que num ritual de meditação repetia vezes sem conta a mesma música. Assim conseguia deixar de prestar atenção à música e centrar-se no mais importante. As gaivotas iam e vinham e por vezes o pensamento ia por lá fora com elas. Na verdade, porque o confronto com o que pensava era mais duro do que o esforço da liberdade de voar. As gaivotas tinham sempre um papel importante nos momentos de reflexão da sua vida, talvez por gostar de estar na janela, nessas alturas... ou pela memória ténue do livro Fernão Capelo Gaivota. Fernão Capelo Gaivota de Richard Bach é um bom ponto de partida para falar dos pensamentos dela. Sentiu sempre o mesmo desejo maluco, que esta gaivota sentia no livro: ir mais além do que as outras gaivotas era capazes e ser livre. Não se sentir presa a nada e concluir que tinha seguido os seus próprios desígnios. Não queria ser uma pessoa diferente de todas, uma vez que sempre achou que existiam outras gaivotas como ela. Queria apenas encontrar-se com essas pessoas e poder partilhar tudo o que lhe passava pela cabeça... Ou pelo menos, partilhar aquilo que ela podia traduzir num discurso mais ou menos coerente para os outros perceberem. Tinha um desejo pelos limites, pelo desafio e pelo encontro entre várias pessoas num patamar diferente daquele que sempre tinha conhecido. Com os olhos postos no infinito, saíu de casa e por pouco não deixou de falar com a família. Alguns dos amigos não a compreenderam e ela acabou por se desligar deles. Achavam-na maluca e insatisfeita com o que ela havia alcançado. Mas para ela isso era insuficiente: precisava de mais qualquer coisa. E resolveu procurá-lo através do amor. No entanto, e como não se queria comprometer, apenas conhecia em profundidade as mãos dos homens com quem se envolvia. As mãos nunca têm nomes nem preconceitos. Apesar disso, pelas mãos pode-se conhecer mais do que um simples nome. As mãos encerram o desejo de tocar e de conhecer para além do que os nossos olhos veêm. A primeira tarefa consistiu em andar às escuras em casa para começar a reconhecer as texturas. Depois começou a olhar para as mãos das pessoas nos autocarros, comboios, cafés, restaurantes... Enfim, existiam mãos por todo o lado. E ela começou a ver apenas mãos. Tudo isto se passou há mais de cinco anos e desde aí tem vindo a apurar a sua relação com as mãos, com o toque e com o amor através dessa forma de se relacionar. Provavelmente já não se lembra dos homens com quem foi para a cama, mas tem uma colecção quase mórbida de fotografias das mãos de cada um deles e das suas próprias mãos em cada um desses momentos. Hoje, passados alguns anos a relacionar-se com as mãos e através delas, começava a perceber que todos esses amores era vazios de mais qualquer coisa. O que lhe tinha parecido uma libertação, tinha tornado-se numa obsessão. E o que lhe parecia liberdade, começava a afigurar-se como uma prisão. Não queria confrontar-se com isso. Era o confronto com uma opção que poderia não ser o caminho que ela pensara ter encontrado. Desfrangmentava o pensamento para que dessa forma pudesse continuar a ter a mesma atitude perante as relações que mantinha com os homens que ia conhecendo. Centrar-se apenas nas mãos e com isso conseguir comprar um bilhete para a ausência de comprometimento duradouro e fugir assim às rotinas que para ela significavam apenas dependência. E a dependência corrompia o seu desejo de liberdade. Não se pode considerar que ela fosse leviana nas relações, porque o que procurava era algo mais autêntico que tocasse num amor sublime. Contudo e depois de mais uma noite em que as mãos estabeleceram todo o ritual de conhecimento, sentiu-se vazia, confusa e sozinha. Era o duro confronto com o engano que tinha perpetuado em nome do que ela pensou ser capaz de viver. Pensava que o amor era apenas um momento em que duas mãos se encontram, tocam e voltam a tocar e depois dizem um adeus sentido da saudade. Por vezes este ritual poderia ser repetido. Era sempre assim que encerrava os seus capítulos amorosos. Até então, no dia seguinte sentira-se sempre preenchida e pronta para viver mais uma história sem rosto. Apenas com corpos e palavras veladas. A intensidade de cada encontro. Era uma mulher que apenas se queria sentir livre e que achava que o amor só teria valor se também ele fosse livre. Saíu mais uma noite. A certa altura deu-se conta de estar a falar com um homem. Olhou para as mãos dele. Eram mãos meigas, de alguém que toca com preocupação pelo bem estar do outro. Ansioso por amar alguém. Mãos carentes e desejosas por lhe tocarem. Não passou muito até que fossem de mãos dadas até casa dele. Nessa viagem até casa dele passaram-lhe imagens de vários encontros com outras mãos, anteriores a este. Lembrou-se de no início, desistir com frequência antes de se envolver com eles. Da angústia que sentia por não conseguir levar a cabo aquilo a que se tinha proposto fazer. Passaram-lhe, ainda imagens de três ou quatro encontros, que a tinham marcado mais do que outros. Naquele momento sentiu o presságio de um ser que estava prestes a morrer. Andou com mais força para a frente para ver se deixava esse ser caído na valeta por onde caminhava. Só quando chegou de manhã a casa é que percebeu que o ser era ela mesma e que não tinha conseguido ficar caída na valeta. Foi depois desta noite que ela decidiu ficar sentada no sofá junto à janela a tentar perceber qual seria o seu verdadeiro ser. Confrontou-se com outras memórias que lhe causaram dores de alma e que noutros tempos tinha atribuído à chuva e ao tempo cinzento. De repente, os cadáveres saíram de todo o lado. De repente, estava um sol magnífico e ela percebeu que os cadáveres continuavam a surgir. Tentou travar uma luta parada. E ouvia vozes por toda a casa. Na rua ouvia gritos. Deixou-se ficar sentada, muito quieta a tentar perceber o que a rodeava. Que metamorfose se estava a operar. Onde é que estavam as bandeiras e os escudos de que se tinha munido nos últimos anos? Enganara-se? Enganara a todos e ela própria na confusão do seu espírito que ansiava apenas a liberdade no amor? Sentada. Sentia-se sozinha e as suas mãos pareciam apenas uma massa morta. Não encontrava amor nas suas mãos. Nem na recordação das mãos que tinha conhecido. Estaria a enlouquecer? Teria errado no caminho? Teria se deixado enganar pela linha do horizonte? Ou quem sabe pelas gaivotas? Teria lido os livros errados? Teria se deixado cegar pelo desejo do infinito sem limites? E afinal como é que se conhece o amor mais sublime?

Web Pages referring to this page
Link to this page and get a link back!
Free Live Chat Rooms Enter my Chat Room
Free Chat Rooms by Bravenet.com
Who links to me?