quarta-feira, abril 14, 2004

A deusa dos desencontros

Nunca me hei-de esquecer a primeira vez em que o meu olhar pousou no teu corpo. Do teu cabelo revolto, indomável. Do teu olhar fixo no chão enquanto dançavas. Dos teus passinhos hesitantes dum lado para outro, ao dançares como o fazias naquela altura.
A esta distância, parece-me que foi exactamente isso que me atraiu em ti, a indiferença que te adivinhei ao longe quando três gajos se aproximaram de ti, sucessivamente, dizendo-te qualquer coisa e afastando-se em seguida, desiludidos. E tu sempre com os olhos no chão, os passinhos hesitantes. Com o teu passo inseguro e o paraíso no teu olhar, como diria certamente o nosso Jorge Palma se te visse.
Tinha de te ter, soube imediatamente. E avancei para ti nessa noite de Dezembro, alí para os lados de Mira.
Não me lembro do que te disse. Lembro-me de dar por mim num quarto, bebado que nem um cacho, agarrado a uma garrafa de tinto manhoso. A tua amiga bazou, o meu amigo perdeu os sentidos numa das camas. Tu foste vestir o pijama e voltaste. Eu não sabia o que fazer, mas deitei-me na mesma cama que tu, seduzi-te, beijei-te. E apaixonei-me logo alí por ti.
Partilhamos o mesmo leito, acariciamo-nos, de certa forma fizemos amor.
Cantaste-me Jorge Palma, que nem conhecia na altura, ao pé da lagoa, com o moinho ao longe. Sentados, agarrados no frio de Dezembro. E ficamos com a nossa música. Continuamos a nossa historia.
Passamos a vida entre Coimbra e Porto durante uns meses. Havia qualquer coisa que nos puxava um para o outro. Eu espantado como era capaz de fazer tanta viagem por causa de ti. Tu a me telefonares cheia de saudades a dizer que chegavas no comboio da meia noite. Rios e rios de dinheiro (bem) gasto em telefonemas. Horas de extase sonoro só de te ouvir falar.
Certo dia, alí ao pé da Praça da República, a dor da perspectiva de ter de partir outra vez foi mais forte. E eu fui-me embora.
Escreveste-me uma carta. Que ainda tenho.
O destino foi-nos juntando uma e outra vez, às vezes no Porto, às vezes em Coimbra, sempre com um concerto, uma queima, uma latada, qualquer coisa. E lá estavas tu. E lá estava eu. Irresistivelmente atraídos um para o outro.
Foste para Itália. Quando voltaste, outra pessoa tinha te conquistado. Mas, numa noite com sabor a cerveja, novamente ao lado do Mondego e ao som de Rádio Macau e Silence 4, acabamos agarrados um ao outro. Passeamos pela chuva. Beijamo-nos encharcados, de madrugada, protegidos do frio e do dilúvio dessa noite numa entradazita duma loja.
Levei-te para o sítio onde estava a pernoitar. E fizemos amor.
Dois ou três meses depois, novamente em Dezembro, encontramo-nos no mesmo sítio onde nos conhecemos... e fizemos amor.
Queria-te minha, mas tinha-te magoado demasiado. A perspectiva da distância geográfica era novamente muito dolorosa para podermos estar realmente um com o outro. Mandei-te rosas e poemas. Telefonei-te uma e outra vez. E perdi o contacto contigo quando outros corpos se revelaram perante mim. Passaram-se meses, talvez anos. Muito tempo mesmo. Mas nunca me esqueci de ti.
Num Agosto qualquer, fui para o Alentejo perseguindo uma mulher que conheci num comboio Coimbra-Porto (curioso...tinha acabado de me despedir interiormente de ti para sempre, ao pé do Mondego pouco tempo antes). Essa mulher escapou-me pelas mãos durante um concerto de Peter Murphy. Felizmente. Fui afogar mágoas em cerveja, olhei para o lado e lá estavas tu, radiosa como sempre. Nessa noite não houve nada entre nós. Talvez medo mútuo da dor que consecutivamente infligiamos um ao outro. Mas a magia permanecia. Separamo-nos.
Tempos depois, fui a uma festa Trance lá para os lados de Leiria. E encontramo-nos novamente. Como se nunca nos tivessemos separado. Passamos a noite como amigos próximos. Mas passou-me pela cabeça aquilo que de certeza te passou pela tua. Mas abstivemo-nos de prazer para não sofrer a seguir. Abraçaste-me quando te foste embora e a magia ainda estava lá. Separamo-nos.
Outras peripécias aconteceram - quase vieste trabalhar para o Porto. E separamo-nos.
O tempo cura tudo, modifica tudo. Excepto o carinho que tenho por ti e a recordação física do teu cabelo encaracolado no meu pescoço, quando te aninhavas em mim na minha, na tua, nas camas dos outros. E o teu olhar triste, profundo, em cada despedida.
Escrevi-te hoje. Não quero nada, não quero te seduzir, não te amo agora. Mas espero que respondas, um passo para mais um encontro nesta história de desencontros. A ver se a magia ainda permanece.
Lembras-te desta mensagem que te chegou acompanhada de flores?

O meu amor tem lábios de silêncio
e mãos de bailarina
e voa como o vento
e abraça-me onde a solidão termina

O meu amor tem trinta mil cavalos
a galopar no peito
e um sorriso só dela
que nasce quando a seu lado eu me deito

O meu amor ensinou-me a chegar
sedento de ternura
sarou as minhas feridas
e pôs-me a salvo para além da loucura

O meu amor ensinou-me a partir
nalguma noite triste
mas antes ensinou-me
a não esquecer que o meu amor existe

J.P.

Tu completas-me. E trazes à tona o que tenho de melhor em mim, sem medos.
Contigo não preciso de afogar o meu Eu marginal em convenções sociais.
Tens o poder de me fazer sonhar novamente. De me sentir novamente livre.
Agradeço aos deuses que tiveram o capricho de nos juntar num Dezembro frio e solarengo.
Como a nossa história, misto de grande dor e maior amor.
Sei que teremos, não importa quanto tempo, a nossa Primavera idílica e eterna.

Ai, ai, cartas de amor, quem as não tem... Já reparaste que é Primavera novamente?







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